você está lendo Sobre moletons e silicones
Foto: Flickr/Electricoomassie

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Outro dia, acordei e fui me arrastando para a sala a fim de ligar a televisão e assistir a algum programa tipo “Doctor Hollywood” porque, com essa idade que me cabe na cara, eu tenho medo de ficar sozinha em casa – e é a única coisa que dou conta de assistir.

Eu fiquei com frio e percebi que teria que buscar uma blusa para não me sentir incomodada, afinal quase nada me incomodava mais que o frio, exceto o seu moletom guardado no meu guarda-roupas desde o dia que você bateu a porta do quarto, bateu a porta da sala, bateu o portão, bateu a porta do carro e por fim saiu.

Pensei se eu poderia fazer algo além de engolir aquele monte de coisa que você não disse, mas não encontrei resposta. Então respirei e dormi me acostumando com a ideia de que no dia seguinte teria que assistir a um programa fútil porque, a partir daquele momento, viveria sozinha.

Desde aquele dia, me tornei a maior especialista em silicone – depois do Doctor Rey. Mas o fato é que estava com frio e a sua blusa que ficou era a coisa mais quente que eu tinha aqui em casa, porque as coisas tendem a ficar frias quando uma briga de palavras não ditas e portas batendo acontece.

Mais do que medo de ficar sozinha assistindo “Investigação Discovery”, eu tinha medo de olhar para aquele pedaço de pano amassado no fundo do meu guarda-roupas. Resolvi enfrentar. Não sou masoquista, lavei a blusa umas oitenta vezes pra ver se tirava de vez o seu cheiro dela, assim como eu fiz comigo com aquele negócio que se chama lágrima, o melhor tipo de sabonete que existe.

Até que eu estou bem limpinha. Andei pelo corredor com a coragem que me falta, abri a porta do guarda-roupas e, lá do fundo, puxei o temido bicho papão de poliéster e algodão. Em uma luta memorável, eu diria, consegui nocauteá-lo e me colocar dentro dele. E decidi que era uma vencedora.

Este foi meu primeiro passo ridículo para a superação. O segundo foi quando eu entendi que deveria parar de usar o mocinho da Hilux que vinha me buscar de vez em quando para comer pizza. Motivo 1: eu odeio pizza, mas estava me importando tão pouco com a situação que não disse a ele. 2: moletons nasceram para ser usados, pessoas não.

Que chocante foi para mim assumir que aquele moletom me aquecia pelas fibras que ele tinha no tecido e não porque era seu. Aliás, o único vestígio seu que tinha ali era o preço daquilo, afinal eu jamais pagaria mais do que oitenta reais em um moletom. De todos os presentes que você deixou no dia que foi embora mudo, o mais útil foi o que não era um presente.

O presente que você provavelmente não queria deixar, porque seria bem útil para esquentar esse seu coração frio.

O presente que tinha mais de mim do que você, porque eu gostava de viver quentinha e segura dentro de um pedaço grosso de tecido – e você preferia a aventura da hipotermia.

Então, sinceramente, se você quiser buscar o resto que esqueceu, pode vir. Tudo que te pertence vai estar te esperando no mesmo lugar. Menos eu e o seu moletom.

Porque isso pertence somente a mim, às minhas portas batidas, às suas palavras não ditas que assombram essa casa e aos 500ml desta moça loira que o Dr. Rey está operando aqui na televisão.

 

Por Carol Ruedas, 26 anos, professora de redação de Campinas (SP).
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