Carta de nós mesmos

12 de outubro de 2011
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Tinha sido uma semana difícil. Eu, não lembro exatamente quando, mas há algum tempo atrás criei o que eu chamei de ” tratado da perfeição ” , que se resumia a um punhado de regras que eu deveria seguir pra ter a vida que eu considerava suficiente pra mim. E esse tratado implicava em um monte de coisas, que para muitas pessoas possa ser básica, mas que era um esforço pra mim. Coisas como dormir e acordar no mesmo horário, manter as gavetas organizadas (ou pelo menos as roupas não espalhadas), malhar todos os dias e comer a quantia certo de porções de proteínas ou carboidratos que uma boa alimentação deveria ter.

Em um segundo nível, enquanto fui ficando mais velha, comecei a me cobrar de outras coisas. Manter meu trabalho perfeitamente impecável, prevendo problemas e estando a frente de todas as coisas, dinheiro sobrando no banco, controles financeiros, como evitar o consumismo, um bom relacionamento familiar e manutenção de boas amizades.

A parte espiritual e controle emocional também me cabiam na lista do meu controle. Estar sempre conectada com o cosmos e com Deus, manter um coração limpo e leve e uma alma sonhadora e otimista. Equilíbrio, equilíbrio de humor seria fundamental, porque era esse último que me ajudava a reger todas as coisas.
Por último, eu criei essa coisa de postura social para relacionamentos e o que chamo de “imagem de altivez”. Eu pretendia me tornar uma mulher calma, que tem aquela aura de que sabe o que está fazendo, que detêm uma atmosfera que fazem todos ficar perto. O retrato da paz, mas tudo somado com mistério pela pouca informação ou poucas palavras que eu deveria ter.

Ou seja, o que eu previ pra mim era ser um ser extremamente agradável, equilibrado, eficiente e praticamente, como venho a concluir agora, robótico.

E o não cumprimento destas coisas me transformavam em um ser culpado, prestes a chicotear-se. Como seria possível eu não cumprir todos estes itens básicos que parece ser o cal de que foi construído o mundo? Não é natural alguém acordar e dormir na mesma hora? Ou consumir a mesma quantia alimentar, mesmo que variada, sem insensatez? E o humor? Jamais poderia oscilar ou ofender alguém, afinal, estando ancorada no meu tecido cósmico, eu relevaria e analisaria instantaneamente tudo que alguém falasse e poderia reagir da forma mais correta possível.

E, aparentemente, obcecada por essas coisas datadas como “básicas”, eu fui esquecendo o que realmente era latente em mim. Ocupada em formar uma imagem de condessa doce perante à sociedade, cresci em meu peito amarras que, ironicamente, me deixavam cada vez menos segura para ser o que eu era.

Mas quem eu era? Eu era a voz da espontaneidade. Eu era artista. Eu era música. E na minha extremidade é que eu fazia notas ordenadas e doces, que apaziguariam o coração e a atmosfera de qualquer um que pudesse escutar (e isto sem a minha presença, onde quer que fosse).

E no meu horário “chinês” de passar o escuro em claro é que eu reluzia nas minhas frases doces e enchia o peito de inspiração para falar, escrever, compor, e cutucar a mais profunda das minhas entranhas.

O meu natural era uma bagunça oficialmente organizada, ousada, e incrível. E eu passando esse tempo todo ocupada em ser um ser socialmente aceitável, perfeito pela unha bem feita e a sobrancelha delineada. Pela voz em tom constante sem agudo que fosse. (Bastante difícil vindo de um soprano).

Hoje, cheguei em casa, abri o armário e peguei um copo de vinho. E notei que eu deveria me libertar desta construção estável que criei pra mim mesma, afinal, tudo bem deixar uma meia espalhada vez ou outra, ou, alguns dias com a casa bagunçada, desde que eu pusesse ordem no que me sufoca se eu não organizar: os meus sonhos, os meus ideias, a minha promessa de vida que nada tem a ver com a imagem que eu passe numa roda de amigos ou numa profile de rede social, nada tem a ver com o meu número de sapatos ou a forma como estão disposta as cores no meu guarda-roupa, nada tem a ver com não comer carne ou correr todos os dias na esteira.

Eu queria aparecer pro mundo no avesso, e é nesse avesso que eu tinha que por ordem quando pusesse para fora: em letra, que pudesse inspirar, em melodia, que pudesse tocar e em canção, que independente de que forma estiver a caixa de e-mails ou de bijouterias… tudo isso não tem importância, quando eu ouvir a minha voz saindo do peito de forma mais natural do que qualquer ordem que eu quisesse ter posto.