você está lendo Eu, você e o último dia do ano

Nos encontramos na padaria. No último dia do ano. Que era minha e agora é nossa. Mais perto aqui de casa, mas a três ou quatro quadras do seu prédio. Fomos lá pela primeira vez em um domingo, quando dispensamos o almoço da sua mãe e comemos um monte de besteiras. Lembro que disse, com os lábios ainda sujos de doce de leite, que aquele era o sonho mais saboroso que você já tinha experimentado na vida. Desde então, depois daquela tarde nublada, aquele se tornou o nosso ponto de encontro. De lá fomos para o parque. Para àquela viagem maluca no interior. Para uma noite qualquer em algum lugar, só para passar o tempo e perder a hora. Era engraçado como sempre acabávamos ali. Depois do porre, das brigas e putaria. Lá estávamos nós dois, sentados, em silêncio ou gritando, olhando olho no olho ou desviando. Nós.

Senti o seu perfume antes mesmo de te enxergar. Fechei os olhos, como todas as outras vezes, e odiei o fato de ter dado aquele frasco azul da liquidação “imperdível” de Natal da Natura. No ano passado. Toda a cidade usava o mesmo perfume e eu vivia sentindo calafrios imaginando que você poderia estar por perto. Era só o tio. O vizinho. O engraçadinho do escritório. Mas não dessa vez. Era você e eu tive certeza quando aquela voz tão familiar fez o pedido de sempre.

– Um sonho de doce de leite, o maior, por favor.

Pensei em um milhão de coisas, inventei centenas de possíveis desculpas e planejei cinco diferentes jeitos de fugir daquele lugar sem deixar rastros. Eu queria te ver, mas no fundo, ainda não estava totalmente preparada. Para te olhar nos olhos, sentir os pés bambos e os dedos trêmulos. Respirei fundo. Oh, droga, você me viu.

– Oi!

Passamos meses ensaiando o que vamos dizer para alguém. Encaramos o nosso reflexo no espelho todo dia e planejamos até o jeito que vamos sorrir ou o ângulo em que nosso rosto deve ficar quando a frase decorada finalmente for dita. No entanto, quando essa pessoa está na sua frente, todas as palavras simplesmente desaparecem. É como se o cérebro estivesse mandando toda a responsabilidade para o coração: Preciso de férias. Vai que é tua. Se vira, porque se nas cartas de amor te desenham, nos encontros inesperados o socorro é seu.

– Oi! Quanto tempo, né?!

Eu poderia ter dito qualquer coisa. Sobre o clima, sobre política, sobre como os fogos de artifício eram insuportáveis. Mas eu tive que dizer, com uma simples frase, o quanto o tempo tinha passado e nada entra a gente tinha mudado. Pelo menos para mim. Entreguei meus sentimentos de bandeja e então era só você se servir, e depois, como sempre, me deixar pra lá.

– Pois é! Você está ótima!

Ótima é o que a minha professora de matemática escrevia sobre a minha nota na quinta série. Ótima é notícia sobre o fim do conflito entre as Coreias. Ótima era a comida da sua avó nos finais de semana. Agora eu? Estou tudo, menos ótima.

– Obrigada!

Eu agradeci e não soube mais o que dizer. Silêncio de segundos que pareceram milênios. Pela primeira vez na vida, eu não fazia ideia do que dizer. A continuação de qualquer assunto, na minha cabeça, era a maneira com que (não) terminamos. Como vai sua mãe? Ela sentiu a minha falta nos últimos meses? Seu irmão passou de ano? Eu não o vejo desde que você gritou comigo na frente dele. Seu cachorro melhorou daquela virose? A veterinária perguntou onde iríamos passar a virada e eu disse que não sabia mais nada da sua vida. O trabalho vai bem? Bom, todos os meus textos agora falam de você e dessa maldita mania que criei de fantasiar o passado.

– Bom, preciso ir. Foi muito bom ver você de novo. Saber que está bem. No fundo, é como se nada tivesse mudado. Aliás, meu telefone continua o mesmo. Quando quiser fazer alguma coisa, me liga. Podemos caminhar nos finais de semana ou andar de patins no Ibirapuera. Tenho certeza que você ainda não tem planos para o feriado.

Parte de mim queria aceitar o convite e jogar todas aquelas sacolas cheias de não sei o que para o alto. Outra parte queria colocar em prática tudo que aprendi nos últimos meses da aula de boxe. Como pode alguém ser tão superficial? Tão insensível? Como se eu não tivesse visto todas aquelas as fotos da viagem postadas no Facebook. Quanta bebida. Quanta festa. E nenhum telefonema bêbado. Nenhuma mensagem. Aliás, você nem deve ter reparado que não é mais meu amigo nas redes sociais. Ok. Não foi um pedido de casamento, mas vindo de você, naquela padaria, eu não poderia pensar de outra forma.

– Ah, lembro sim, talvez eu lige. Obrigada pelo convite. Boa virada de ano!

Eu não iria ligar coisíssima nenhuma. Nem tenho mais o número. Tanto tempo que não disco, que talvez nem o saiba mais decor… OK! Mentira! Sei sim. Com o 9. Sem o 9.  De trás pra frente. O que eu queria mesmo era terminar aquela conversa logo.

– Ah sim, feliz 2013! Espero ver você mais vezes durante o próximo ano. Vou para a casa dos meninos logo mais. Você sabe, odeio essa época do ano e meus pais viajaram. Não tenho escolha. – Disse, enquanto saia da padaria e olhava o semáforo.

Eu não fazia ideia do que aquilo significava. Mas quando você completou a frase, tive certeza, absolutamente nada mudou. Eram só palavras. Seus amigos. Suas histórias inventadas. E principalmente, sua maldita falta de decisão. Era o que eu mais odiava em você. Na verdade ainda é. Por que tanta acomodação meu Deus? Tanto medo de mudar e levar alguma coisa realmente a sério? Você disse que odiava rótulos e que tinha medo de estragar tudo. Agora vejo que não tem mesmo o mínimo de consideração.  Sabe, você ainda nem tocou minha nova tatuagem. Nem deve se lembrar do gosto que a minha boca tem. E por mais que sinta minha falta nas noites solitárias, sim, eu vejo suas frases, não faz absolutamente nada para que isso mude. Nada além de falar e apertar enter.

Vi você atravessar a rua e escutei a menina do caixa dizer:

– É crédito ou débito?