Estimação!

04 de março de 2011
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Quem é essa que chora com cena de novela, e se pega rindo, irônica e erroneamente, quando a briga é séria? A moça que não vive sobrevive sem doce após o almoço, e se uma soneca no meio da tarde tirar, muda o humor como quem vasculha o próprio armário: à procura do espírito que sirva e agrade. Experimenta. Troca. Aprova, mesmo sabendo ser pouca a duração da escolha. Não fosse por um olhar mais atento, quase não reconheceria.

A dita que no cheiro das livrarias sente o consumo coçar-lhe a mão, o cartão querendo asas na carteira. Horas gastas, obras de perto apreciadas, frustração sem sacolas e mãos que abanam, vazias. E então: sapatos. Coloridos, altos, femininos. Como num passe de mágica, a volta estonteante do desejo de comprar instantâneo, brusco. Experimenta um, quer dois. Poderia comprar quatro no cartão. Senta. Reflete, viaja, conspira. Decide: o preto não, já tem três. O rosa aperta o joanete, a praga e herança bailarina. O azul é diferente. Sai da loja de sacola esvoaçada e o mundo carregado naquela caixa de papelão: a alavanca eficaz pra qualquer auto-estima feminina. O salto, onramental ou simplesmente doze, que deixa a visão mundana amplificada, gostosa de admirar.

É a mesma donzela que chega em casa, e cozinha. Reencarna a Ana Maria Braga distinta que há meses nela se perdeu. Sal de menos, açúcar demais e: nada de paixão. Vai de biquíni pro sol escaldante lá fora, dourado, louro, efusivo; todo seu. Em plena civilização, o ritmo do dia correndo às pampas, e o corpo estacionado em direção ao princípio da existência, à estrela maior. Música nos ouvidos, olhos reclusos, quase sono. Redescobre astros e constelações no céu azulado, esquece as cortinas abertas e se manda pro banho de horas. Se desdobra para não dar show aos vizinhos, de toalha no corpo e cabeça. Finge a surdez quando chamada, troveja a voz, quando a urgência se apresenta. Dama paradoxal, quer os leões do sacrifício diário todos vivos: seus percalços são como bichanos de estimação. Zelo comum: recíproco. Alimento e carinho em troca de resguardo. Para que a cuidem quando a vida quiser a engolir, para que a protejam, vociferando os percalços do caminho, um a um. Cansada de ser várias sem agrado e aplausos exaustivos, quer ser apenas essa uma que dê certo, que ganhe o papel no fim do teste. Dentro do que é, tantas. Em cada uma delas, a mesma, na versão atualizada do que o momento pede, a hora necessita. O encontro da parte sensível, com a brava. A mistura de ser impulso com precaução, instinto e admiração. Deixar que a louca se vá, para que venha a santa, benévola. É quando o tempo esquenta que chove inteirinho aqui por dentro. Na fuga da ansiosa, se deparar com a compulsiva. No rito interminável de me redescobrir, é que aos poucos me fragmento. É no meu sono que começam meus sonhos; e ao vivo, que encontro determinação para realizá-los. Definir não limita, impossibilita. Aborta espontaneidades e futuras surpresas. Que é quase outono, e não há porque sacrificar os desafios do caminho: nesses que verdadeiramente nos encontramos, pelas beiradas. Os leões tem de ser cuidados e acariciados, com cuidado e parcimônia. Que é quase outono, e o abrigo é necessário: o pior frio é o que congela a alma e impede movimentos.